O FIM DA DEMOCRACIA LIBERAL?

 

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I


Em 1819, com a memória ainda bem fresca da Revolução Francesa, discursando no Athénée Royal em Paris, Benjamin Constant famosamente explicou como a noção de liberdade dos Antigos, os Gregos e Romanos, divergia dos Modernos, aqueles que sobreviveram a Revolução e enterraram o Antigo Regime. Para Constant, os Antigos privilegiavam a virtude como valor máximo; do mesmo modo, esse conceito de virtude era por eles entendido por igual, donde que seria apenas natural que fosse aplicado também por igual, ou seja, experienciado, vivido, através do colectivo.


No mundo clássico, muito longe ainda da actual noção de direitos individuais, o “homem livre” não era aquele que fazia o que lhe apetecia, muito pelo contrário: era aquele que assumia com devoção a sua posição, e os deveres a ela associados, na sociedade; ou seja, a liberdade vivia-se na aceitação do entendimento moral e social sobre a interpretação colectiva do que o conceito de “virtude” para eles significava. A liberdade era, portanto, colectiva, partilhada, um valor comunitário imposto pela autoridade da própria sociedade sobre os indivíduos.


A excepção, em parte, a esta regra talvez pudesse ser encontrada em Atenas. Aqui, as liberdades individuais aproximavam-se mais das dos contemporâneos. Para Constant, a razão dessa diferença é facilmente explicada pelo carácter mercantilista do regime ateniense: mercadores procuram o lucro, não o espólio; a troca, não a guerra, ou seja, a paz. Daí, sai a noção por ele advogada de que o comércio, essa actividade que também visa a posse daquilo que os outros têm, representa um corolário pacífico face ao anterior instrumento para intentar o mesmo objectivo: a guerra pela obtenção do bem alheio. Essa necessidade de comerciar abre horizontes, flexibiliza morais, e daqui a sociedade e a própria norma social.


Assim, é do comércio que nasce a capacidade de sequer vislumbrar a liberdade como os modernos a compreendem: diz Constant que o comércio suprime as necessidades, satisfaz as vontades, os desejos e, consequentemente, imprime um amor pelas liberdades individuais, aquelas que, por sua vez e em retorno, permitem o comércio bem-sucedido.


Deste modo, os Estados Ocidentais transformaram uma interpretação clássica da liberdade experimentada apenas através da participação no colectivo — a polis — onde tudo era político, para uma nova interpretação, a moderna, que deriva do indivíduo para o colectivo, e não o oposto; bem como assenta numa experiência do mundo mais particularizada, individual, se bem que perdida numa multidão individualizada onde a influência no corpo político para o comum dos mortais passa, na maior parte dos casos, apenas pela tranquilidade de um boletim de voto — por definição sempre exterior ao próprio indivíduo. 


"Ao contrário de muitos liberais contemporâneos que diabolizam a liberdade positiva que imaginam como meramente oponente à negativa, ambas as liberdades, argumentou Berlin, representam valores importantes para a sociedade podendo e devendo ser na medida do possível conciliadas"


O nível político separou-se então do particular, do privado, do individual, este último configurando a essência e o espaço da vivência da liberdade, para um outro nível, o público, onde as decisões sobre o destino da comunidade se mantêm, de uma forma transcendente, já colectiva, apenas que exteriores ao indivíduo.


Por oposição, no mundo Antigo, a vida era passada, gasta, embutida, dentro do colectivo. No mundo Moderno, a vida passa então a representar uma criação particular de cada um de nós — individualizada, atomizada, mas livre no sentido contemporâneo — e o colectivo, a súmula que, ainda compreendendo um todo maior que a soma das suas partes, consubstancia-se num nível que paira sobre os indivíduos, que os regula e limita, é certo, mas de fora


O mundo enriqueceu, avançou, melhorou-se — todos os indicadores de qualidade de vida e riqueza assim o indicam —, e a modernidade nasceu alicerçada nesta nova liberdade erigida por cima da individualidade e da particularidade, quer no campo do político — com a separação do público-privado —, quer no campo económico — com o triunfo da propriedade privada e a livre troca de bens e capitais.


Anos mais tarde, em 1958, numa célebre palestra em Oxford, Isaiah Berlin  perante a realidade da Guerra Fria, viria a re-classificar as distinções de liberdade. Uma, a negativa, baseada em direitos individuais, liberdades e garantias dos indivíduos, consagrava a liberdade como a ausência de constrangimentos, limites, imposições do colectivo sobre o indivíduo — o tal colectivo que limita, igualiza, mas não consubstancia. No fundo, a liberdade moderna de Constant. A outra, a positiva, não derivava no entanto da liberdade dos Antigos. A liberdade positiva passa pela reconhecida necessidade de “libertar” os indivíduos dos constrangimentos que eles próprios enfrentam face ao mundo. A iliteracia, a miséria, a doença, tudo isto são limitações que os homens modernos carregam nas suas vidas e que os impedem de experienciar a liberdade negativa que outros homens mais afortunados — letrados, ricos, saudáveis — podem gozar. A liberdade positiva exige que medidas colectivas sejam impostas sobre os indivíduos por forma a garantir igualdade de oportunidades — educação, saúde, etc. —, ou seja, um ponto de partida na vida que seja considerado digno e que abaixo do qual não se consegue sequer usufruir da liberdade no seu sentido negativo.


Ao contrário de muitos liberais contemporâneos que diabolizam a liberdade positiva que imaginam como meramente oponente à negativa, ambas as liberdades, argumentou Berlin, representam valores importantes para a sociedade podendo e devendo ser na medida do possível conciliadas: da liberdade negativa, sai a liberdade quantitativa, espiritual e material, prática, individual, face ao colectivo; da liberdade positiva, sai a qualificação através de um critério social e comunitário do que significa, ou deveria significar, uma condição mínima para usufruir aquela “liberdade”.


 Do mesmo modo, e segundo Berlin ainda, a absoluta defesa de uma das liberdades sem qualquer atenção à outra degeneraria nas piores iniquidades: no caso negativo, em extrema desigualdade e na injustiça dos miseráveis; no caso positivo, em extrema igualdade, ou seja no autoritarismo estatal e na negação da própria liberdade através de um exagerado critério colectivo que imporia pelo crivo da sua autoridade um molde comum a toda e qualquer manifestação de existência individual — o totalitarismo, portanto.


"Esta ideia de equilíbrio, aliás, é fundamental para que se compreenda a verdadeira essência  por detrás da democracia liberal tal como a conhecemos e vivemos"


Deste conflito, e na procura de um equilíbrio, faz-se a ordem democrática liberal, aquela que em nome da justiça e da liberdade colectivas assume a responsabilidade de re-distribuir parte da riqueza produzida pela criatividade e labor individuais, criando condições “positivas” para gerar igualdade de oportunidades, ou seja, liberdade no seu sentido positivo. O Estado-Social, como conceito, seja ele mais assente no sector público ou no privado, configura um legado da democracia liberal contemporânea, representando muito mais o equilíbrio entre os dois conceitos de liberdade e não tanto o triunfo de um deles sobre o outro. Esta ideia de equilíbrio, aliás, é fundamental para que se compreenda a verdadeira essência  por detrás da democracia liberal tal como a conhecemos e vivemos.



II


Berlin várias vezes ao longo da sua obra se preocupa em explicar que a divergência e o conflito fazem parte da vida humana. Dessa condição de natural conflito e escassez existencial nasce uma agonia existencial que obriga o bom sistema político a incorporar o conflito na própria génese da sua “constituição”. Esta “agonia” deriva da escolha a que a própria condição humana nos força: quando no mundo somos forçados a escolher entre o sol na eira ou a chuva no nabal, seja no mundo prático e material na escassez das coisas, seja no mundo moral com valores que concorrem entre si — vede, por exemplo, a forma como a Segurança e a Liberdade se limitam mutuamente, a aposta numa representa geralmente um corte na outra — e resultam num estado de escassez moral, a escolha de uns face aos outros representa um dilema. Este dilema primordial origina diferentes respostas para diferentes pessoas, e desta pluralidade de respostas face ao mesmo dilema primordial, nasce o pluralismo. Nem toda a gente decide da mesma forma, nas mesmas circunstâncias, o que significa que sendo o dilema da escolha inescapável, então o pluralismo das respostas também o é. 


Daqui se pode retirar, também, que a democracia liberal representa muito mais o espaço de equilíbrio e negociação das diferentes e plurais visões, valores e vontades que alimentam os homens de forma particular do que o triunfo de uma determinada forma de governo que se assume como a melhor, a mais perfeita, a teórica solução para os problemas do mundo. 


Equilíbrio entre conceitos, como vimos acima no caso do conceito primordial na nossa comunidade política como é o de “liberdade”, e também equilíbrio de valores, bem como de vontades subjectivas e particulares que presidem ao fabrico do próprio tecido social — e dos quais não podemos escapar uma vez que configuram uma característica imponderável da condição existencial humana. 


"Por definição, conclui-se que não podemos também advogar única e exclusivamente com um fundamento racionalista a democracia liberal como essa boa-sociedade. Mas foi precisamente isso que os herdeiros do sonho Iluminista intentaram fazer"


A ideia anteriormente expressa de que a democracia liberal deriva de um equilíbrio, porventura acidental na História, entre uma miríade de valores e conceitos concorrentes, quando não incompatíveis, enriquece sobremaneira a defesa da própria democracia liberal; em particular, quando a alternativa passa por vê-la e interpretá-la como um simples articulado de princípios, um conjunto organizado racional e moralmente numa determinada fórmula que representa uma solução definitiva e última para uma comunidade política.


A nuance entre a primeira e a segunda alternativa é significativa. 


Para quem entenda a democracia liberal como a solução que se descobriu, ou inventou, que resolve o dilema político, de forma definitiva — a segunda possibilidade na nuance ali referida —, a democracia representa invariavelmente um derivado de princípios racionais, logo verdadeiros, portanto universais, imutáveis e, também, naturais. Daqui, retira-se a democracia liberal como o corolário da evolução humana, a prova da superioridade do homem contemporâneo face aos seus antecessores. Do mesmo modo, e nas próprias e perfeitas condições, a seu tempo todos os homens compreenderão, ou deveriam compreender, a virtude da superioridade desta verdade racional que se revelou, bem como as vantagens inquestionáveis do sistema democrático.


Para esta visão, a democracia — e quando refiro “democracia” quero significar a democracia, ou ordem, liberal — justifica-se racionalmente. A História apenas configura um longo caminho até este quase-perfeito momento onde a verdade racional ilumina o futuro radiante, e democrático-liberal, dos bem-aventurados que experimentam a suprema, logo verdadeira, liberdade. Assim se explica, por exemplo, a facilidade com que tantos acreditaram que o ideal democrático e liberal poderia ser exportado para outras culturas, ou como se esperaria que as diferentes culturas recém-chegadas ao Ocidente o abraçassem como evidente e inquestionável. Nem uma nem outra se verificaram.


O ideal racionalista triunfa na teoria política pela mão dos antigos — Platão, como máximo exemplo — e continua sempre presente na longa tradição de equiparar, como já o faziam os pré-socráticos, a Filosofia com a Ciência Natural. Em finais do Século XVIII, Kant ainda era simultaneamente, entre outras coisas, astrónomo, geofísico — escreveu, a título de exemplo, um tratado sobre o Terramoto de 1755 de Lisboa — e filósofo. 


A seu tempo, após o dealbar da revolução científica, a Filosofia separou-se da Ciência Natural, mas a teoria procurou sempre seguir nos assuntos humanos o rigor mecanicista e racional que se julgava vislumbrar no mundo físico e natural. A isso mesmo exortavam os pensadores do Iluminismo, num clamor geral de assumpção do novo conhecimento tão bem plasmado no entusiasmo de Bacon no seu Organon que proclama o mundo antigo não como antigo mas como jovem, ou infante, o que significa que a scienzia nuova, ao contrário do que Vico imaginava, não seria nova, mas sim adulta. Para Bacon, os iluministas representavam então o homem adulto, completo portanto, liberto dos erros e das ignorâncias próprias das crianças toldadas pela ignorância e desconhecimento. É aqui que nasce a noção de progresso como um processo de perpétua melhoria, normalmente acoplado com um desprezo cada vez maior pelas tradições anteriores, vistas como datadas e infantis.


As ciências humanas, representando o pináculo da húbris do cientista, sonharam imitar no mundo dos homens aquilo que as congéneres naturais descobriam no mundo material, ou seja, encontrar a ordem, o rigor, a certeza dos céus e do Universo e harmonizar esse conhecimento com a Terra, dando ordem ao caos moral e existencial do mundo subjectivo dos homens. Em suma? Resolver o dilema moral do Homem através do conhecimento científico. Uma vez resolvido o problema, todos os homens por igual a ele poderiam aceder, quer por si próprios quer, nos casos que o justificassem, guiados por outrem que lhes prestasse a ajuda necessária a compreender a verdade. Então aí triunfaria a democracia, a harmonia da paz perpétua.


"(...) toda a experiência empírica da História recente refuta a ideia de que a superioridade racional dos modelos Ocidentais se revelou de forma natural como superior: ... nem os EUA pela força revelaram a verdadeira solução democrática no Iraque, nem os modelos multiculturalistas europeus têm sido bem-sucedidos a integrar e fazer ver a vantagem do sistema Ocidental face às diferentes culturas que aqui chegam, se estabelecem e que em muitos dos casos recusam os valores e o modo de vida Ocidental"


No entanto, infelizmente, este sonho apenas revela o triunfo de uma interpretação — racionalista, iluminista, positivista — do mundo, logo da liberdade, face a outras alternativas. Apesar da intenção, nem pouco mais ou menos a Filosofia do Século XX comprovou a insólita e ingénua ideia de que existe um padrão racional segundo o qual se pode aferir racionalmente se X ou Y é moralmente verdadeiro ou falso, muito pelo contrário. Aliás, dentro do próprio método científico se demonstrou que o processo é exactamente o oposto: depois de Karl Popper, a ideia de que há um consenso definitivo científico sobre A ou B não recolhe qualquer tipo de rigor analítico. O que sabemos hoje poderemos rejeitar amanhã, e vice-versa, sendo o conhecimento, em particular o das ciências humanas, tudo menos objectivo, universal e imutável. 


No campo do mundo moral tanto pior. Em suma: não há forma de definir universalmente o que é bom ou, por outros termos, no que consiste de facto a boa-sociedade. Por definição, conclui-se que não podemos também advogar única e exclusivamente com um fundamento racionalista a democracia liberal como essa boa-sociedade. Mas foi precisamente isso que os herdeiros do sonho Iluminista intentaram fazer.


Vivemos hoje os dias finais dessa utopia racionalista.


Desde logo, e confirmando Popper, cada vez mais as certezas objectivas do mundo das Ciências Naturais se dissipam: a física quântica, a probabilidade, a incerteza, substituíram a física Newtoniana, a mecânica, a infalibilidade. Depois, toda a Filosofia do Século XX passou a desprezar os ideais racionalistas universais legados pelo Iluminismo, em particular pela tradição Kantiana que ainda hoje, de forma anacrónica e contraditória, domina e estrutura em larga medida a teoria política contemporânea. Rawls, por exemplo, que nas palavras de Michael Sandel não passa de uma tradução contemporânea anglo-saxónica do obscurantismo  racionalista Kantiano, configura sem dúvida alguma o nome maior e central  da teoria política contemporânea — e toda a sua argumentação não passa de uma experiência de pensamento assente nos princípios racionalistas Kantianos.


Finalmente, toda a experiência empírica da História recente refuta a ideia de que a superioridade racional dos modelos Ocidentais se revelou de forma natural como superior: como já foi acima mencionado, e a título de exemplo, nem os EUA pela força revelaram a verdadeira solução democrática no Iraque, nem os modelos multiculturalistas europeus têm sido bem-sucedidos a integrar e fazer ver a vantagem do sistema Ocidental face às diferentes culturas que aqui chegam, se estabelecem e que em muitos dos casos recusam os valores e o modo de vida Ocidental. 


O grande problema da justificação racionalista da democracia é, portanto, evidente e resume-se em dois pontos: primeiro, num nível abstracto, se a justificação racionalista da ordem liberal não se impõe como verdadeira, ou pelo menos plausível e aceite universalmente como tal, então num modelo de justificação racionalista da democracia, sem a chamada verificação, nada sobra que a justifique de facto, restando apenas uma fórmula que vazia na sua formalidade carece de  verdadeira substância; depois, em segundo lugar, e num nível mais prático, é forçoso que se coloque a questão: se não são unicamente os princípios racionais, universais e absolutos que sustentam a democracia liberal então o que é que o faz? Uma vez que a resposta não se desenvolve no plano abstracto, teórico e, em grande parte dos casos, ininteligível, dos filósofos, então a solução para esta questão deverá passar pelas circunstâncias históricas, particulares, culturais, portanto sócio-políticas e económicas, da sociedade que criou a democracia liberal.

 

Em suma, a democracia liberal não é uma criação filosófica e abstracta que se impõe do geral e abstracto, do mundo das ideias, para o mundo material e histórico dos homens; pelo contrário, a democracia liberal e os seus princípios são uma criação humana que emana desse mundo real e que ascende aos modelos teóricos a posteriori. Ao contrário do modelo racionalista, quer o assumido, quer o mais disfarçado mas presumido por aqueles que inconscientemente o seguem apregoando os princípios pelos seus méritos, tidos como científicos, verdadeiros ou racionais, a democracia liberal não nasce dos princípios teóricos para uma aplicação prática; por oposição, ela nasce de uma criação prática para uma análise teórica que se lhe sucede. Assim sendo, e por definição, aquilo que melhor defende essa democracia liberal terá que ser, desde logo, em primeiro lugar, a manutenção das condições que permitiram que ela ocorresse. 


"A democracia liberal não nasce como solução para o conflito, nasce como processo de integração do conflito. Sem conflito não haveria necessidade da democracia. Deste modo, a democracia deveria ser vista como um processo, um instrumento, e nunca como um fim em si mesmo"


Rejeitada a segunda possível interpretação da democracia na nuance acima mencionada, sobra-nos então a primeira: que a democracia liberal, ao contrário de um conjunto de princípios descobertos e deliberados, mas porque mesmo assim representa um espaço de equilíbrio e negociação de diferentes e plurais visões, valores, vontades, e princípios, que conduzem os homens, então a democracia liberal nasce, ou deriva, desse pluralismo primordial, pois foi desse modo e nesse meio que ela se gerou, e não o oposto.  


Assim, a democracia não será tanto um sistema descoberto, ou uma verdade revelada, mas um acidente de percurso, um acontecimento fortuito porque não planeado, no caminho da Humanidade e que deriva de uma circunstância particular da existência humana: o pluralismo de valores e de opiniões que deriva inexoravelmente da subjectividade intrínseca à condição humana, e uma sociedade que encontrou na ordem liberal a forma de lidar com essa mesma circunstância. 


Aqui, para além de compreender-se que a democracia liberal deve a existência a muito mais do que os simples princípios que ela própria apregoa (se é que se consegue chegar a uma clara e definitiva concórdia sobre quais estes são e o que significam), também se descortina que o pluralismo — seja nos valores, nas vontades, nos interesses ou, para utilizar um jargão mais filosófico, nas interpretações que  se fazem da realidade — é anterior à democracia, e não o contrário. No entanto, os políticos e filósofos tendem a vender a ideia de que o pluralismo deve ser defendido pela democracia e pelo liberalismo. Mas será assim? Não será, pelo contrário, o pluralismo, aqui visto como uma circunstância da vida humana, um facto existencial, algo que não pode ser modificado a não ser pela força, aquilo que melhor defende a democracia liberal, simplesmente porque esta responde aos desafios que aquele coloca às comunidades humanas?


Vale a pena reforçar este ponto: é deste facto existencial — o pluralismo —, um fardo que o homem carrega nos seus pequenos ombros desde a alvorada da consciência humana, que nasceu a necessidade de acomodar as diferenças, dirimir os conflitos, encontrar soluções, não finais e completas, ou perfeitas, mas parcelares e perpetuamente imperfeitas. Daí, dessa necessidade que Constant atribuiu à vontade de comerciar ao invés de guerrear, adveio um conjunto de ferramentas que progressivamente se enraizaram, tendo como mérito a edificação e instrumentalização, a instituição, portanto, desses processos em corpos políticos cada vez mais complexos, mas orgânicos, que foram dando incremental resposta à necessidade de integrar o conflito natural de vontades humanas, muitas vezes incompatíveis, num processo que amenize e controle violências, legitime compromissos e promova bem-estar, segurança e abastança. A democracia liberal não nasce como solução para o conflito, nasce como processo de integração do conflito. Sem conflito não haveria necessidade da democracia. Deste modo, a democracia deveria ser vista como um processo, um instrumento, e nunca como um fim em si mesmo.



III


Berlin atribui também, e reforçando a noção de um equilíbrio, o nascimento da democracia e da ordem liberal, não ao triunfo completo do Iluminismo face ao Antigo Regime — como tanta da história actual nos quer fazer acreditar — mas ao compromisso entre duas respostas antagônicas entre si à queda do Antigo Regime: o Iluminismo e o Romantismo. Do primeiro, saiu a visão racionalista, universal e abstracta que  esteve na base de muito do que acima se descreveu e que, de certo modo, ainda hoje perdura como interpretação dominante sobre a forma como funciona o mundo — científica, amoral, neutra, universalmente aplicável, racional. O segundo, é certo, nasce como uma interiorização ressentida e materialmente empobrecida germânica face ao apogeu opulento do liberalismo dos salões franceses, mas, não obstante, não deixa de responder pela mão de Johan Georg Hamman, Goethe, Herder, e tantos outros obreiros e herdeiros do Sturm und Drang, a uma dimensão fundamental da vida humana: a particularidade do indivíduo, a sua originalidade, a vida como uma criação artística individual, uma dança selvagem para parafrasear Hamman, um acto de fé, ou um corajoso salto mortale como exclamou primeiro Jacobi e depois Kirkegaard, ambos seus herdeiros. Tudo isto ganhou consequência política. E estas duas correntes profundamente incompatíveis entre si haveriam de, cada uma à sua maneira, ajudar a criar o compromisso filosófico que viria a sustentar, logo justificar, o advento da democracia contemporânea.


Senão vejamos:


Do Iluminismo racionalista, esse ‘compromisso’ integrou a necessidade de um sistema geral e abstracto, dos direitos universais, das garantias gerais, da igualdade perante a lei, da neutralidade da lei e do Estado, da sistematização do próprio ‘compromisso’ em instrumentos teóricos claros, objectivos, concretos, caracterizados pela sua própria universalidade, pela regra.


Do Romantismo, esse ‘compromisso’ integrou o respeito pela criatividade individual, o indivíduo como dimensão da experiência de vida, o respeito pela interioridade, pela Fé, pela subjectividade, pela particularidade, pelo Expressionismo, pela excepção, todo um conjunto de características humanas pivotais e que o ser racional abstracto imaginado pelos Iluministas não corporizava; muito pelo contrário, era precisamente do escape a essa condição humana — veja-se a posição original Rawlsiana, a título de exemplo contemporâneo herdeiro dessa tradição — que nascia a visão racional e universal que iluminava o pensamento.


"O verdadeiro sustento [da democracia] é aquela particular cultura que ao longo do seu processo histórico concreto, e único, gerou um processo estável e duradouro que, no interesse de todos, acomodou de forma eficiente o natural conflito que caracteriza todas as sociedades humanas"


A democracia liberal, vista assim como um modus vivendi, promove então o consenso num mundo em permanente conflito porque ela própria representa um compromisso, um balanço, entre interpretações filosóficas e culturais de diferentes cambiantes da vida humana. Não haveria democracia sem o advento do ideal universal e abstracto tão próprio do Iluminismo, e tão defendido pelos racionalistas, é verdade. Mas o universal e abstracto sem o contraponto do individual e particular deriva num perigoso totalitarismo que traga indivíduos em nome de uma visão colectivista da razão, de uma “verdade” e do mundo — como foi o caso da URSS. Do mesmo modo, também a apologia do irracional, do emocional, do particular, sem o contraponto do interesse do colectivo geral e abstracto impede a criação sequer de um consenso, quanto mais de um sistema que promova e defenda esse consenso — sobraria apenas o caos, o conflito na sua forma pura, primordial.


Mas, como vimos, este compromisso não deriva de uma descoberta ou revelação racional. Pelo contrário, deriva do conflito entre essa visão racionalista e a contraparte romântica, bem como da cultura conservadora que perdurava  ainda do Antigo Regime na sociedade. É desta mescla cultural que nascem as condições particulares que evoluirão a seu tempo para um sistema organizado no qual nós, os contemporâneos, tivemos a fortuna de nascer. Por tentativa e erro — o processo ancestral de aquisição de conhecimento — os nossos antepassados geraram toda um conhecimento acumulado — uma cultura — que, no período de crise desencadeado pela Revolução, como forma de lidar com a explosão conflitual que inundou a sociedade e a comunidade Ocidental, conseguiu criar um compromisso que veio a juntar essas três correntes culturais, intelectuais e políticas. 


A verdade, no entanto, é que essa condição de conflito é, como se argumentou atrás, inerente à condição humana. Naturalmente, as diferentes comunidades, no caso talvez já fosse mais correcto dizer civilizações, lidam de forma diferente com esse inevitável conflito primordial: normalmente através da força, em particular a justificada de forma teológica, invariavelmente um poder central, seja ele teocrático ou político, impõe a ordem e cria uma estabilidade política e social — até que seja substituída por outra após o ciclo tradicional da vida: apogeu, declínio e queda. 


No Ocidente, também assim foi durante séculos, apenas para a partir de determinado momento conseguir substituir esse mecanismo autoritário por um novo equilíbrio que, ao invés do poder teocrático ou real que descia sobre a população, passou a assentar na ideia que a autoridade emana do próprio povo para cima, para os líderes. Esta inversão face ao Antigo Regime, bem como o seu estabelecimento como uma norma instituída, é a verdadeira base da democracia liberal: bem-sucedida, como os teóricos liberais, em particular os economistas, hoje explicam, por promover a livre troca e gerar a abundância material, mas, menos falado mas igualmente fundamental, bem-sucedida também por integrar e incorporar de forma voluntária e pacífica um mecanismo que transforma eficazmente o conflito primordial em equilíbrio político, económico e social. A civilização Ocidental representa, portanto, e esta conclusão é importante, a excepção cultural e civilizacional no mundo que foi capaz de gerar, ou inventar, uma inovação política chamada “democracia liberal” — de carácter não menos excepcional. 


O que sustenta então a democracia, em particular a liberal tal como nós, os Ocidentais, a entendemos? Os seus princípios democráticos? A pura racionalidade dos seus sistemas? A base científica dos estudos que a suportam? Não, não e não. O verdadeiro sustento é aquela particular cultura que ao longo do seu processo histórico concreto, e único, gerou um processo estável e duradouro que, no interesse de todos, acomodou de forma eficiente o natural conflito que caracteriza todas as sociedades humanas.


Ou seja, além dos princípios que norteiam o próprio consenso político, são as circunstâncias particulares que permitiram o triunfo desses princípios que são fundamentais. Mais: sem compreendermos por que razão este acidente histórico verdadeiramente ocorreu, sem lhe prestarmos a devida atenção e homenagem, o tempo passará e outros compromissos, entre outros desequilíbrios, ocorrerão como forma de exprimir as diferentes visões e os diversos anseios das pessoas que habitem esses tempos e esses espaços. Novos conflitos, bem como novas soluções serão advogadas, e novos princípios serão encontrados. Sem se compreender o processo cultural, histórico e político real por detrás da democracia liberal, não se conseguirá descortinar uma justificação intemporal que a sustente. Pelo contrário, apenas reconhecendo que a verdadeira intemporalidade justificativa reside, não no nível abstracto e metafísico dos filósofos, mas no facto existencial do pluralismo, no mundo do aqui e agora, apenas quando se se reconhecer nesta circunstância da existência humana a pedra sobre a qual a intemporalidade — que justifica a necessidade da democracia liberal — pode ser assente, apenas aí a defesa da ordem liberal estará intelectualmente bem estabelecida, argumentada e, dentro do possível, demonstrada. 


"De nada servirão à democracia os princípios políticos, sejam eles mais ou menos racionais, se a cultura que suporta uma vontade... para se chegar a um consenso não existir"


Assim, e em conclusão, é nessa linha de argumentação e defesa da ordem liberal — empírica, cultural, histórica — que se permite a resposta bem-sucedida ao intemporal conflito que configura a existência humana. Podem os liberais bem-intencionados advogar a sua defesa da ordem liberal empoleirados em princípios tidos de forma errónea como intemporais mas, porque estes princípios apenas reflectem um certo tempo, uma certa cultura e um certo equilíbrio de valores, então a sua defesa da democracia liberal não significa mais do que uma ilusão. Aliás, quantos desses defensores, em nome dessa defesa, não infringem já eles próprios os princípios que originalmente definiram a democracia liberal Ocidental? Não representam as quotas por raça ou sexo uma evidente infracção ao princípio da não descriminação legal por raça ou sexo, por exemplo? E, conceitualmente, independentemente de razões, não são essas infracções levadas a cabo precisamente em nome do princípio da não discriminação que eles próprios pervertem


Apenas por aqui se intui desde logo que tão importante como os princípios é o consenso na interpretação que se faz desses mesmos princípios. E esta, a interpretação, naturalmente, varia com a perspectiva que interpreta, ou seja, com o ponto de partida cultural, ideológico, conceptual, no qual assenta essa mesma interpretação. Curioso é que são muitas vezes os mesmos que advogam as vantagens do relativismo que igualmente imaginam que esse mesmo relativismo se limitaria à antropologia, ou a questões de hábito ou costume, e que ficaria, como por magia, à porta do processo racional dos seres humanos. 


Em suma, se defendermos a democracia apenas baseados nestes princípios e esquecermos que sem uma determinada cultura estes, porque dela derivam, não existem, ou pelo menos nada significam em concreto, então a democracia perecerá quando esses princípios, bem como as interpretações que deles fazemos, deixarem de ser advogados como o fazemos hoje e outros, fruto de novas interpretações, aparecerem para os substituir. 



IV


Mais uma vez o regresso à realidade prática é fundamental. A correlação entre os índices de riqueza, paz e segurança e o advento da democracia, bem como desta com os princípios de propriedade e liberdade que Constant bem descreveu e que, a par do consenso filosófico, representarão porventura a base de estabilidade que sequer permitiu o próprio consenso, demonstra a posteriori uma importante justificação empírica da democracia: ela funciona


Daqui decorre uma outra questão fundamental: porquê? Por que razão um sistema de organização social, político e económico baseado neste particular compromisso entre o individual e o colectivo, o universal e o particular, o objectivo e o subjectivo, o conflito e a harmonia, por que razão funcionou tão bem para nós, aqueles que dele beneficiamos mais?


Uma visão Aristotélica, imagina-se, poderia dizer que a razão do sucesso passará por configurar um virtuoso compromisso no meio termo. Talvez assim seja. No entanto, seguindo a pista revelada por Berlin em que o conflito, e não a harmonia, é aquilo que representa a verdadeira base da democracia que apenas existe para desse conflito perpetuamente gerar o consenso e o compromisso, tomando o conflito como o ponto de partida, e sendo este uma cambiante da vida, logo real, observável, palpável, material, que no limite do que podemos saber como verdadeiro passa por factual, logo não relativizável, um facto existencial, então é este facto primordial que desde logo justifica não apenas a necessidade mas também o sucesso da democracia. 


"O racionalista contemporâneo — quer o progressista quer o conservador, quer o estatista quer o liberal — sonha, no entanto, com o absoluto: procura a verdade, a solução, o universal, bem como o ideal. Mas o absoluto é próprio do domínio moral, transcendente, não do político ou material"


Esse sucesso deriva, então, do facto de a democracia responder a uma necessidade absolutamente real na experiência humana: aquela de resolver os diversos conflitos que inevitavelmente compõem a experiência humana de forma pacífica, prática e estável. Deste modo, a democracia representa um instrumento potenciador de consenso que se justifica ele próprio pela necessidade real de encontrar consensos para que uma sociedade opere de forma funcional. Justifica-se, portanto, empiricamente no mundo real dos homens — e não na utopia idealista e racionalista dos filósofos.


Do mesmo modo, e assumindo esta visão como o verdadeiro princípio norteador, bem como fundador, da democracia, deve compreender-se que a melhor defesa da democracia passa por reconhecer, primeiro, as condições que permitiram o seu aparecimento, bem como os erros em que incorrem aqueles que julgam defendê-la apregoando a sua cientificidade ou superioridade técnico-teórica. Pior ainda, o perigo dos ataques daqueles que apregoam princípios ou valores absolutos, logo não negociáveis, que procuram tornar sinónimos da própria democracia. A esses, aos fanáticos — seja da Igualdade, da Segurança, de concepções particulares de Justiça —, falta-lhes a noção de que a ‘absolutização’ de um valor nunca poderá ser apanágio da democracia liberal: pelo contrário, a democracia faz-se do consenso entre os advogados de todo e cada valor que faça parte de toda e qualquer particular interpretação sobre o que representa um bem para a vida humana — o tal pluralismo primordial. Assim, a posição democrática é precisamente a oposta a quem apregoe um valor absoluto, incluindo aqui, pelas razões que se explanaram, aqueles pretensamente deduzidos pela Razão: um valor absoluto por definição não se negoceia, não se compromete. Ora, se não se negoceia nem se compromete, então não é democrático, pelo menos no sentido em que entendemos a democracia. Do mesmo modo, representa uma infracção conceptual face ao pluralismo inicial que impele ao compromisso: ao “absolutizar-se” um valor face a outros força-se um equilíbrio — literalmente, pela força — nesse valor, algo que prejudica, impede, perverte, a própria essência da democracia.


Desse modo, se há postura que qualquer um pode ter para defender essa  “nossa” democracia é compreender que a sua visão deverá ser sempre negociada com a dos adversários, e que do consenso a que se chegue, a própria democracia sairá beneficiada — bem como a paz, bem-estar e abastança que daí advém para a sociedade.


Mais: conceptualmente, a democracia justifica-se então como esse modus operandi que se transforma em modus vivendi, como uma forma de viver a circunstância humana, como um processo e não como um estado abstracto de ideias supostamente superiores. Concomitantemente, a superioridade da democracia  liberal revela-se da vontade daqueles que a quiseram criar, e depois defender. Dos valores concretos — contrários, incompatíveis, adversários e opostos — partilhados nessa específica comunidade, e depois numa específica e única vontade partilhada pelo acaso histórico, cultural, e comunitário, naquela particular realidade, naquele conjunto de pessoas concretas, para dirimir, conciliar, e harmonizar, todos esses valores num consenso particular, único e irrepetível, histórico, fundacional, que representará seguramente um dos feitos mais extraordinários da Civilização Humana — e da Ocidental em particular.


De nada servirão à democracia os princípios políticos, sejam eles mais ou menos racionais, se a cultura que suporta uma vontade geral, para roubar o termo mas não o significado a Rousseau, para se chegar a um consenso não existir. 


Do mesmo modo, os valores civilizacionais, as tradições, a História, bem como o respeito e conhecimento desses valores, dessas tradições e dessa História, representam a melhor defesa da democracia liberal: é aí que se reconhece que ao invés de princípios gerais e abstractos que, como Bacon advogava, a Humanidade adulta teria descoberto, é alicerçados nos ombros dos que vieram antes de nós, e que erigiram este complexo e intrincado sistema de consensos, que vislumbramos a verdadeira magnitude da criação democrática — bem como o dever de a defender protegendo esse precioso e único legado.


Infelizmente, a nossa geração parece não compreender a importância que a cultura, ou talvez fosse mais correcto dizer “tradição cultural”, — aqui tida como um conjunto mais ou menos consciente de valores civilizacionais — representa na defesa dos nossos princípios fundadores. Ao imaginar esses princípios apenas como verdades racionais, os racionalistas contemporâneos amputam aos princípios a sua humanidade, ou seja, aquilo que eles têm de real e, como vimos, de verdadeiro — tudo o que os torna capazes de apelar à nossa adesão.


Pior ainda no triunfo do racionalismo, é a tradução do próprio Homem num transcendente vazio de sentido e conteúdo reduzido à sua essência racional — como se fosse a única que o caracterizasse. Retirado da sua particularidade, o Homem não é nada, nem poderia ser. Sem a sua circunstância, sem aquilo que o distingue dos demais, sem a sua ligação ao mundo, aos outros homens, sem a sua humanidade, um homem reduz-se a um abstracto que englobando todos não representa ninguém.


O racionalista contemporâneo — quer o progressista quer o conservador, quer o estatista quer o liberal — sonha, no entanto, com o absoluto: procura a verdade, a solução, o universal, bem como o ideal. Mas o absoluto é próprio do domínio moral, transcendente, não do político ou material. E a democracia liberal, como vimos, nasceu de um compromisso cultural que — e por isso todos os cambiantes em conflito na comunidade o davam como adquirido — era anterior, ou superior, ao próprio nível político, prático e advocatório. 


"A célebre polarização que tanto assusta a Academia e os centros políticos  nos dias de hoje deriva precisamente deste processo: ao substituir como fonte de compromisso democrático, e também moral, a cultura particular que o sustentava, o homem ocidental contemporâneo com o seu racionalismo pseudo-científico apenas deslegitimou o processo de resolução de conflitos que se consubstanciava no sistema democrático"


Essa cultura primordial, como todas, traduzia uma perspectiva ontológica face ao mundo e uma interpretação sobre quais os valores aos quais se deveria dar primazia no tal conflito primordial. Ao valorizar o mundo, estabelecendo, pelo menos, o ponto de partida sobre o que é “bom” e o que é “mau”, essa cultura representa, por definição, uma organização moral da sociedade face ao caos que configura o mundo lá fora. Essa organização, como vimos, a seu tempo, desenvolveu-se no mundo prático no conjunto dos princípios que configuram a democracia liberal.


 Hoje, no entanto, o racionalista imagina que a democracia poderá ser ela própria esse domínio moral; porque a imagina como o altar absoluto dos verdadeiros princípios, o teórico contemporâneo já não a vê como a consequência de um determinado ordenamento cultural e moral, mas, por oposição, como uma imaginária causa desse mesmo ordenamento. Mas, como já foi acima referido, os absolutos não se discutem, apregoam-se. Não se negoceiam, não são passíveis de compromisso. A simples ideia de que a democracia possa ser a base de uma organização moral revela-se falsa a partir do momento em que se compreende que a ideia que melhor a resume é a do balanço ou compromisso entre valores e princípios concorrentes, muitas vezes incompatíveis ou, até, incomparáveis. Colocar a democracia ao nível do ideal ou absoluto,  do moral portanto, automaticamente nega a a natureza procedimental da própria democracia.


O racionalista, no entanto, imagina vislumbrar a custo, no limite da sua racionalidade, como dizia Platão, aquilo que é o Bem e a Verdade. Esta pretensão levou o racionalista a acreditar que a sua visão absoluta e universal poderia substituir o sobrenatural transcendente que alimentava o compromisso moral que presidiu ao advento do compromisso político democrático e liberal que aqui se tem descrito. A democracia, agora elevada a um plano moral, e absoluto, deriva na ilusão racionalista que justifica a democracia como a solução política, e como vemos agora também moral, para o dilema humano. Nessa ilusão, tudo o que é bom é democrático, e tudo o que é democrático é bom. Mas, como vimos, esta noção é falsa e a única consequência que traz consigo é a destruição, ou negação, da essência da própria democracia: apregoando-a, destroem-na.


"Nesse momento que se avizinha já próximo, os absolutos morais entrarão em conflitos progressivamente mais violentos. Conflitos que apenas reflectem o desabar do compromisso moral e cultural que permitiu o advento da democracia liberal, bem como do falhanço da promessa racionalista que procurou substituí-lo" 


Como procurei demonstrar, o carácter instrumental e processual da democracia, mesmo que alicerçado no mundo dos factos, logo desse modo assente em algo verdadeiro, não permite que ela se justifique por si mesma. Consequentemente, a democracia não pode ela própria ser moral. Muito pelo contrário, sendo instrumental ela apenas poderá ser amoral


O plano moral sempre foi anterior ao da democracia, que reside no plano político e prático. Aliás, e como vimos, é precisamente de um consenso moral particular — o Ocidental — que a democracia surgiu. Assim, a democracia dependeu da existência de um consenso que lhe era anterior, quer histórica quer metafisicamente — um consenso, ou compromisso, que lhe estava na origem, que a gerou. Mas é precisamente este consenso moral que hoje desaparece às mãos do credo racionalista na medida em que se imagina ele próprio como fonte moral do que é Bom e Verdadeiro. Assim, ao transferir a fonte de moralidade do plano do transcendente para o deliberativo, o racionalista não apenas impede a verdadeira compreensão sobre quais são as bases da democracia Ocidental como, pior ainda, retira a própria possibilidade para que esta possa sequer existir: sem compromisso moral, porque dele depende, não há compromisso político naquilo que a boa-sociedade deve ser.


Na Gaia Ciência, Nietzsche de forma célebre descreveu um velho louco que de lanterna na mão procura por Deus à primeira luz da manhã, apenas para chorar a sua morte às mãos dos homens. Anos mais tarde, já à luz do seu entardecer, o Filósofo haveria de perguntar-se como poderia a civilização Ocidental sobreviver sem o compromisso moral — o Cristianismo — que a sustentava. A mesma questão se coloca hoje de forma ainda mais premente: como pode a democracia liberal sobreviver à ausência do compromisso moral que a permitiu? A resposta do racionalista não poderia estar, como vimos, mais errada, o que apenas acelera e agrava o problema identificado por Nietzsche: ao trazer o plano moral para o da discussão democrática, o que, como vimos, por definição, deriva numa discussão, ou imposição, de absolutos, apenas revela a ausência de compromisso moral e político, bem como a consequente falência do processo democrático como elemento potenciador de compromissos. 


A célebre polarização que tanto assusta a Academia e os centros políticos  nos dias de hoje deriva precisamente deste processo: ao substituir como fonte de compromisso democrático, e também moral, a cultura particular que o sustentava, o homem ocidental contemporâneo com o seu racionalismo pseudo-científico apenas deslegitimou o processo de resolução de conflitos que se consubstanciava no sistema democrático. E ao reduzir o plano moral, tal como o democrático, ao seu substrato racional, na ausência da verdadeira base intelectual, histórica e moral, apenas sobra uma discussão de absolutos que, precisamente por serem absolutos, não são passíveis de negociação — daqui nasce a polarização.


"(...) a democracia não pode ela própria ser moral. Muito pelo contrário, sendo instrumental ela apenas poderá ser amoral"


Assim, nunca outra coisa além da polarização poderia ocorrer: sem base de compromisso moral sobra o conflito ancestral, natural, agora também moral. Neste momento, o hábito democrático, o costume ou tradição formal, é a única coisa que segura os extremos que progressivamente aprofundam o conflito. Mas o hábito não será suficiente  para gerar um compromisso entre as partes, por tudo o que já se disse, mas também porque a seu tempo os novos indivíduos que aparecem na arena questionam os velhos hábitos; sem se aperceber dos méritos que geraram o hábito, na ausência da cultura que justifica o hábito, ou o processo neste caso, tudo desaparecerá eventualmente no esquecimento  que vêm como o processo histórico. Aí, depois de vazio e caduco, o hábito será substituído pelo simples conflito entre vontades antagónicas, cada uma representante de uma interpretação sobre o que é Bom e o que é Verdade, ou seja, facções que sustentam já diferentes morais, que por serem morais, logo absolutas, representam partes inconciliáveis. Ao mesmo tempo, no mercado democrático, sem compromisso moral, nada existe para legitimar uma derrota: onde apenas o poder se enfrenta, sem o filtro do consenso moral, então onde estabelecer que meios são apropriados no combate eleitoral? Se for um combate moral, um Bem superior, contra um Mal, por que não legitimar em nome da vitória do Bem sobre o Mal a fraude, o crime ou, por fim, a guerra? 


Nesse momento que se avizinha já próximo, os absolutos morais entrarão em conflitos progressivamente mais violentos. Conflitos que apenas reflectem o desabar do compromisso moral e cultural que permitiu o advento da democracia liberal, bem como do falhanço da promessa racionalista que procurou substituí-lo. 


Sobra apenas aos advogados da ordem liberal procurar inverter este processo: proteger as bases da ordem liberal, a cultura e a tradição que a gerou, compreender quais as linhas de argumentação filosófica e teórica para sua  eficaz defesa, compreender que o desafio, entre tantos, é também um desafio moral


Não sendo bem-sucedidos, e nada aponta para que sejamos, num mundo em conflito, como Hobbes explicou, sobram apenas duas possibilidades: guerra entre as partes; ou um poder forte e impositivo que submeta as partes ao seu jugo, autoritário mas capaz de manter a ordem e a paz impondo uma nova moral, que por ser imposta nunca poderá ser sinónimo de liberdade. Assim, salvo uma inversão no rumo dos acontecimentos, a breve trecho já não será numa ordem liberal, democrática e livre, que estaremos a viver. A crescente moralização do espaço político, a absolutização da defesa de valores incompatíveis, bem como a polarização, ou desagregação, democráticas que daí deriva, tudo isto, quando bem compreendido nas suas causas e consequências — como aqui se procurou fazer —, indica que esse colapso da ordem democrática e liberal se aproxima.


Aí, nesse dia que se vai anunciando, a democracia ameaça ser substituída por outra coisa, mesmo que não no nome — que talvez por hábito e vazia legitimidade se poderá manter. E com esse anunciado crepúsculo liberal, o compromisso que fez o Ocidente desaparecerá engolido pelo vazio moral que a húbris racionalista nos legou. 


Comentários

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